O Prólogo do Evangelho de João que meditamos neste dia não é apenas uma introdução (pro-logos) ao quarto evangelho, mas constitui a mais alta síntese de toda a Escritura, pois apresenta o seu cumprimento. Tudo aquilo que foi anunciado no Antigo Testamento pela Palavra de Deus, que agora se fez carne, alcança a sua realização plena. Nos dois primeiros versículos, João ao usar a expressão “No princípio”, não nos remete a um aspecto puramente cronológico para indicar o que havia no início de tudo, ou mesmo como tudo teve começou, mas retomando o Livro do Gênesis, cuja primeira expressão é idêntica à do Prólogo, o nosso autor nos faz mergulhar no grande mistério do amor de Deus que, ao chamar à existência tudo o que criou, anunciou o seu projeto de vir morar nessa bela casa que Ele mesmo construiu. Contudo, não quis apenas habitar entre os seres que criou, como um estranho, mas armando a sua tenda naquele ser que foi criado à sua imagem e semelhança. Com esta expressão (“No princípio”), João relembra aos seus leitores a indissolubilidade e a interdependência dos dois Testamentos, pois o Novo não descarta nem torna obsoleto o Antigo, nem o Antigo se basta a si mesmo sem o Novo.
A tradução da expressão hebraica (bereshit: em princípio) pode incorrer numa distorção semântica se se considerar apenas o aspecto cronológico (início, começo), mas o seu alcance vai para além disso. Uma única palavra no hebraico (bereshit) formada por três outras (be: em/ rosh: cabeça/ it: indica uma abstração) aponta para o ato criador de Deus como o fundamento de tudo, não apenas assinala o começo de uma história. Diz-se aqui que a Palavra criadora de Deus era em princípio (grego: arché), esse princípio sustenta tudo e a tudo dá sentido. Portanto, sem a Palavra tudo vira ou continua caos e confusão, perde-se a razão. Por isso, afirma-se: “Era a luz de verdade, que, vindo ao mundo, ilumina todo ser humano”. Um ser humano que vem ao mundo mas não se encontra com a luz de verdade, permanece no caos e confusão primordiais, não alcança a plenitude de vida. Jesus afirma: “Eu vim para que todos tenham vida e vida em plenitude” (10,10).
Este tema da luz perpassa toda a Sagrada Escritura: desde Gn 1,3: “Haja luz” até o Ap 22,5: “Não se precisará mais da luz da lâmpada, nem da luz do sol, porque o Senhor Deus brilhará (grego: photosei, iluminará) sobre eles”. Para o Antigo Testamento a associação da luz com a Palavra de Deus é evidente: “Tua Palavra é lâmpada para os meus pés, e luz para o meu caminho” (Sl 118,105). Para João, esta luz é o próprio Jesus que afirma: “Eu sou a luz do mundo, quem me segue não andará nas trevas, mas terá a luz da vida” (8,12).
Por outro lado, apesar de a luz brilhar intensamente, há quem a rejeite: “Veio para os seus, mas os seus não o receberam”. Contudo, as trevas não conseguiram aprisionar a luz. Pela fé, os que se deixam iluminar pela luz de verdade “recebem o poder de se tornarem filhos de Deus”, porque o Filho de Deus, a Palavra eterna: “Se fez carne e habitou entre nós”. Ainda que a construção sintática permita distinguir as duas ações (fazer-se carne e habitar), não podemos separá-las, pois o habitar entre nós se deu no momento que essa Palavra se fez carne, assumiu a nossa condição. O próprio Paulo nos esclarece que a nossa vida aqui é como um habitar em tendas, que um dia serão desfeitas: “Sabemos que, se a nossa morada terrestre, esta tenda, for destruída, teremos no céu um edifício, obra de Deus, morada eterna, não feita por mãos humanas” (2Cor 5,1). Jesus, nessa mesma perspectiva, fala do seu corpo (a tenda que assumiu) como o templo que mesmo destruído, será erguido definitivamente em três dias (cf. 2,19).
Este tema da tenda que a Palavra, ao encarnar-se, arma entre nós e em nós (grego: en ´umin) une o Natal ao Mistério Pascal, pois a revelação mais alta de quem é esse Verbo eterno, que assumiu a nossa condição, recebeu um nome, Jesus Cristo, através do qual “nos vieram a graça e a verdade”, e se dará na sua hora quando a sua glória se manifestar. Glória já antecipada na Bodas de Caná: “Manifestou a sua glória e os seus discípulos creram nele” (2,11). Vale salientar que esse sinal é chamado de princípio (arché) dos sinais. Portanto, o fundamento de toda a obra de Jesus é manifestação da sua glória a fim de que vejamos e creiamos nele. Esta glória, porém, é consequência da sua fidelidade ao Pai que o sustenta até a cruz: “Que direi, Pai, salva-me desta hora? Foi precisamente para esta hora que eu vim. Pai glorifica o teu nome!” (12,27-28). Ver a manifestação da glória de Jesus para dela participar exige de nós reconhecer que o recém-nascido da manjedoura é o mesmo que foi pregado na cruz. Assim como anjos cantam glória na noite de Natal, também no sepulcro do ressuscitado anunciam a boa nova de que Ele não está mais ali. Que a celebração do Natal renove em cada um de nós a certeza de que o Verbo eterno armou sua tenda em nós, e que esta tenda, ainda que desfeita, não pode ser destruída, pois tem uma sustentação, a sua cruz, pois o recém-nascido, que reclinado na manjedoura, iluminou o mundo com o seu nascimento, salvou o mundo manifestando a sua glória pregado na cruz