Os dehonianos da Casa Geral refletem sobre o enfoque antropológico-moral da encíclica Fratelli tutti.
A última encíclica do Papa Francisco abre diversas perspectivas para a compreensão do ser humano e do seu comportamento comunitário e social. Para nós da Casa Geral dos Sacerdotes do Sagrado Coração de Jesus, é um instrumento do qual nos valemos para o nosso percurso de formação permanente nesse ano, tendo escolhido como lema comunitário a mesma expressão franciscana que dá nome à encíclica: “Fratelli tutti”. Há algumas semanas, numa manhã de sábado, acolhemos uma reflexão feita pelo P. Cataldo Zuccaro, sacerdote da diocese de Frosinone, professor de Teologia Moral nas pontifícias universidades Urbaniana e Gregoriana, hóspede residente na nossa comunidade dehoniana, que nos propunha um enfoque antropológico-moral da encíclica papal sobre a responsabilidade e corresponsabilidade.
P. Cataldo iniciou sua reflexão a partir de uma antropologia subjacente à encíclica: uma antropologia da indigência e da vulnerabilidade. Todos experimentamos uma vulnerabilidade constitutiva da nossa condição humana. O nascer e o morrer são experiência dessa fragilidade que nos pertence. Para cada um de nós, ser vulnerável não é uma questão de “sim” ou “não”, mas uma questão de “mais” ou “menos”. Logo, podemos falar de uma vulnerabilidade ontológica, mais que de uma vulnerabilidade estrutural, que nos compromete com uma responsabilidade comum: há uma dimensão relacional, a vulnerabilidade não é somente uma experiência da nossa fraqueza, mas abertura aos outros. Experimentar nossa vulnerabilidade nos obriga a superar toda forma de individualismo, porque descobrimos que somos todos necessitados. O ser humano ontologicamente vulnerável é necessariamente constituído em relação.
Essa concepção antropológica nos leva a uma instância ética: porque somos vulneráveis e dependentes, devemos ser responsáveis e corresponsáveis. P. Cataldo identifica três possíveis respostas à realidade de necessidade. A primeira é a indiferença compreendida como negação da existência do outro. A sociedade quer mascarar essa atitude com as pretendidas virtudes da tolerância e da autonomia, promovendo uma “ética da indiferença”. A segunda resposta possível é a instrumentalização da pessoa necessitada, segundo uma “ética do mais forte”: as relações são fundadas unicamente sobre o que o outro pode oferecer. O risco é o de justificar um paternalismo que, no entanto, ao invés de promover o outro, perpetua sua condição de necessidade. Uma terceira resposta é reconhecer que somos todos devedores uns dos outros. Essa “dívida social” nos faz passar da responsabilidade à corresponsabilidade, porque não só acolhemos as necessidades alheias, mas também manifestamos as nossas. É necessária uma “ética do dom” na qual o destino do outro é assumido como nosso próprio destino e se busca sua realização como se fosse nossa.
Eis portanto a novidade da “Fratelli tutti”: o outro não é mais um estranho, mas um irmão. Somos chamados a constituir um “nós” que vive numa casa comum e a expressar o nosso “ser irmãos” que assumem a dor do fracasso do outro (cf. FT 18 e 77). A “necessidade de ser” que pertence à nossa condição existencial nos convida a colocar-nos como resposta à necessidade de todos. Segundo essa ética do dom, a responsabilidade é proporcional à profundidade da necessidade de ser do outro e as relações se tornam espaço de realização recíproca de nossa dignidade pessoal. A responsabilidade se torna assim corresponsabilidade, cuidar uns dos outros, e a comunidade de irmãos passa a ser lugar onde partilhar quer a vulnerabilidade que nos une quer uma responsabilidade comum. Nesse sentido, nossa vida comunitária não se reduz a um igualitarismo, mas garante que cada um receba o que lhe é devido. De fato, recordava-nos P. Cataldo, nossa Regra de Vida afirma que a vida comunitária exige que acolhamos os outros como realmente são (cf. Cst 66), nas suas necessidades, e nos convida a viver relações em que nos esforçamos para compreender as aspirações de cada um na esperança daquilo que os outros podem vir a ser com a ajuda do nosso apoio fraterno (cf. Cst 64). Desse modo, redescobrimos a comunidade como espaço de corresponsabilidade, de “ser para os outros”, o que para a fé cristã tem um nome próprio: amor.