Hoje é evidente que a vocação a ser discípulo, tal como se apresenta nos seus aspectos visíveis da vida vivida, tem dificuldade para atrair novas pessoas de qualidade e generativas, também devido ao facto de as premissas de muitos modelos de vida religiosa não serem suportáveis nem sequer do ponto de vista teológico.
Na vida religiosa, será que o atual modelo de «comunidade» é compatível com o modelo de «fraternidade»? Para responder a esta pergunta, o ponto de partida é a consciência de que a dificuldade atual da vida religiosa tem origem na crise da sua forma de ser hoje na história.
Então o que poderá devolver a esta forma de vida de discipulado a atração espiritual e humana de uma vocação enraizada no desejo de assumir a atitude de Jesus, que cura e ama a vida, que é amigo dos perdedores e dos marginalizados? Trata-se, portando, de uma escolha feita por pessoas que sabem perceber os sonhos que Cristo tinha, capazes de criar alegria no ato de viver e de se oferecer.
Hoje é evidente que a vocação a ser discípulo, tal como se apresenta nos seus aspectos visíveis da vida vivida, tem dificuldade para atrair novas pessoas de qualidade e generativas[i], também devido ao facto de as premissas de muitos modelos de vida religiosa não serem suportáveis nem sequer do ponto de vista teológico.[ii]
Mas se um determinado modelo fracassou, não quer dizer que, na Igreja, também tenha fracassado uma tensão espiritual energética, uma perspectiva ideal de um novo tipo de vida de discípulado como sociedade fraterna e igualitária dentro de um pluralismo de modelos de comunhão que assumem as características, a cultura, os valores humanos e religiosos do momento em que temos a graça de viver.
O modelo que herdámos do passado sofre da soma de muitos ditames de vários momentos, que se foram acumulando ao longo dos séculos por uma mentalidade de adição.
Destaco algumas delas. Na época da «anacorese», o apa (pai) Arsénio (séc. IV) ensinava aos seus seguidores: «Foge dos homens e serás salvo» [iii]: daí a convicção de que não se podia estar junto com Deus e com os homens ao mesmo tempo.
Em seguida, depois do período das perseguições – uma época em que o «martírio» era considerado como o ideal de perfeição cristã – o termo «martírio» foi aplicado à vida monástica, fazendo com que a ideia de «sacrifício» se tornasse algo de identitário. Entretanto, estimulada pela espiritualidade da época, a religiosidade de alguns grupos tornou-se de tipo sacral, levando assim a um perfil monástico que transformou o «seguimento» num seu privilégio exclusivo.
Depois de vários séculos, no «Renascimento», o Card. Bellarmino teorizou a Igreja como uma «sociedade perfeita», significando com esta expressão uma sociedade exatamente igual à «do povo romano ou do reino de França ou da república de Veneza», ou seja, uma sociedade hierárquica, piramidal, constituída por «senhores e súbditos». [iv]
Finalmente, nos últimos séculos, pouco a pouco, fomos chegando ao que se diz na instrução do Vaticano “Perscrutai”: «Pode acontecer que, com o tempo, as exigências sociais convertam as respostas evangélicas em respostas medidas em eficiência e racionalidade “dos negócios”, com a consequência de a vida religiosa “perder a sua autoridade, ousadia carismática e franqueza evangélica, por ser atraída por luzes que são estranhas à sua identidade». [v]
Para além dos modelos herdados
«Vinho novo, odres novos»[vi]: esta expressão da Congregação para a Vida Consagrada (CIVCSVA) vem dizer-nos que nos encontramos agora na consciência de que não existem soluções codificadas capazes de gerar coisas inéditas, porque todas as ideologias humanas que vêm de épocas distantes são inevitavelmente míopes, concentradas no tempo que lhes deu origem. Estamos noutra época mental, que também marcou muitos passos em frente nos campos antropológico, sociológico e teológico e, ao mesmo tempo, nos está a levar a compreender que, se não entrarmos no processo de vida que é mudança, evolução, até as experiências mais belas se desvanecem, as iniciativas mais generosas endurecem, os carismas dos fundadores institucionalizam-se e perdem o seu caminho.
O futuro que esperamos para a vida religiosa ou é «pascal» ou não será. Para o ser, terá de passar pelo destino do grão de trigo, segundo o qual morrer é algo inerente ao processo de «fazer nascer». O que deve morrer na vida religiosa é aquilo que na função evangélica já não a estimula, mas lhe serve de obstáculo. Trata-se, porém, de não fazer passar por evangélico aquilo que não o é, uma tentação hoje bastante difusa. Não são evangélicos os sistemas organizacionais complexos, de tendência vertical, inevitavelmente caracterizados pela despersonalização e dependência, não são evangélicos. Pelo contrário, aqueles em que é dada preferência ao caminho da fé, mais que à rotina da observância que não facilita a frescura do encontro com o Senhor, porque muitas vezes está mais atenta à ortodoxia formal do que à evangélica.
«O serviço da autoridade não é alheio à crise em curso»[vii]
No documento «Vinho novo, odres novos», da Congregação para a Vida Consagrada, diz-se: «Não pode deixar de nos preocupar com a permanência de estilos e práxis de governo que se afastam do espírito de serviço, a ponto de degenerar em formas de autoritarismo»[viii], […] que «lesa a vitalidade e a fidelidade dos consagrados»[ix].
Não havia autoritarismo no início do cristianismo, quando havia a autoridade de homens eminentes nos dons espirituais, ou seja, líderes de um caminho espiritual autêntico, para os quais o termo autoridade indicava a função de fazer crescer os irmãos, fazendo parte de todo o processo de discernimento e não como um agente externo ou superior. Contudo, quando mais tarde o conceito de autoridade recebeu um significado jurídico, equivalente a uma verdadeira «potestas», foi muitas vezes tentado a impor-se à vontade dos outros. Como escreveu Y. Congar, foi assim que a autoridade, que começou por ser de tipo orientativo-ascético, com o tempo assumiu uma diretiva acentuada e frequentemente de carácter dominante, transformando a “submissão” num elemento fundamental da fé. Como resultado, os canonistas anteriores a Suárez (séc. XVI) apresentavam o poder dominador como o poder próprio dos responsáveis, em virtude do qual são “senhores absolutos” da vontade dos seus “súbditos”[x]. Como consequência, a Igreja cristalizou-se cada vez mais, dando origem ao que, uma vez mais, Y. Congar não hesita em chamar uma verdadeira “hierarcologia” com traços de paganismo[xi].
Contudo, é preciso dizer que quando falamos de “poder”, estamos a usar um termo com um significado complexo e não sem ambiguidade. O poder de governo é uma coisa boa, necessária em todas as sociedades participativas para as quais não pode deixar de haver um centro regulador de superintendência e coordenação, ao passo que é funesto o poder sobre o qual Cristo disse: “Não seja assim entre vós”.
Hoje, porém, estamos numa altura em que – como se diz em «Vinho novo, odres novos» – «passou-se da centralidade do papel de autoridade à centralidade da dinâmica da fraternidade»[xii], para a qual as posições de domínio expressas também nos adjetivos “superior” e “súbdito” – termos que ainda se encontrem no atual Código (por exemplo, cân. 630 §4) – já não são aceitáveis na sensibilidade da comunhão[xiii], uma vez que a ideia de superioridade é necessariamente farisaica, pelo que a religião não tem o direito de se comprometer a reforçar estes poderes e a legitimá-los.
Quais os elementos indicadores da fraternidade?
«Fraternidade» é a expressão que repropõe a afirmação de Jesus: «vós sois todos irmãos», segundo a qual as relações devem assentar no paradigma relacional da família em que nos preocupamos uns com os outros, nos acompanhamos e encorajamos mutuamente (EG 99).
Se é assim, dificilmente se pode considerar vida fraterna aquela que se apresenta como uma vida de «observância organizada», em que o aspeto da coletividade prevalece sobre o da fraternidade, esquecendo que as pertenças por referência institucional não são suficientemente coesivas e, em termos de nos amarmos uns aos outros, trazem pouco. É por isso que, na nossa área cultural, quase ninguém se compromete com um “para sempre” em relação a um código, uma regra escrita ou um sistema caracterizado por trocas formais, especialmente se defendidos pelo cargo.
Hoje em dia, de modo especial, a comunhão à medida de pessoas adultas e maduras, de modo a evitar que se torne “comunionismo” deve ser rejeitada sempre, juntamente com a igualdade, liberdade, gratuidade[xiv]. Não se pense que esta afirmação é excessiva, sobretudo se a compararmos com as exigências de Cristo, que propôs relações sociais que são mesmo invertidas, em que «o primeiro seja o último, o servo de todos»: aqui está a primazia paradoxal daquele que se faz «servo sem ter senhores».
Como reação ao imobilismo, no período do pós-Concílio, foram elaboradas e promovidas novas formas de experiência evangélica[xv], nascidas também do facto de saber como responder às perguntas a que a Vida religiosa não deu ouvidos, porque já estava satisfeita com o seu arcaico repertório de respostas. Pelo contrário, hoje são capazes de futuro aquelas formas evangélicas que mostram – e era isto que os cristãos queriam saber – que é possível viver uma vida cristã radical, mesmo em formas diferentes das de tipo clérico-monástico que, porém, continuam a ser um lugar desejável e digno de significado para as vocações celibatárias que vivem debaixo do mesmo teto, mas se estas oferecerem a possibilidade de serem uma expressão clara e transparente da força libertadora e sanadora de Cristo: de facto, seria um empobrecimento para a Igreja e para o mundo deixar apagar estas luzes.
As orientações das novas gerações
As novas gerações estão a caminhar para escolhas que são evangelicamente eficazes, mas ao mesmo tempo «humanamente significativas». Não quer dizer que os valores, mesmo os que estão subjacentes à vida evangélica, mesmo hoje não possam ser aceites pelos jovens: de facto, Cristo ainda os seduz; mas ao contrário de outros tempos, as novas gerações deixaram de estar dispostas a empobrecer a vida negando a plenitude da vida, de modo que o desejo de Deus não pode consistir na negação do que saiu das suas mãos, mas sim no seu sucesso. Hoje, mais do que nunca, a vida de discipulado é aquela que acontece, como todas as vidas, no caminho da humanidade, porque não se pode falar de salvação em termos cristãos sem ter diante dos olhos a salvação de todo o homem, capaz de «provar» a entrada da vida divina no ato de viver em plenitude a dimensão humana. Não temos de ficar admirados se, hoje em dia, as pessoas, especialmente os jovens, não optam por viver juntas para colecionar méritos, mas para se apoiarem mutuamente num determinado caminho, uma vez que, se sonharmos sozinhos talvez o sonho não se realize, mas se sonharmos juntos, o sonho torna-se realidade.
É por isso que aqueles esquemas de vida comunitária de concepção colectivista, para os quais o que mantém a união é o sistema de pensamento e as tradições, mais que a concretude da ação interpessoal feita de amizade, solidariedade, compaixão e tolerância, que mantem a união; por outro lado, temos uma eclesiologia em que os termos «ecclesia» e comunidade designam não tanto o conjunto dos cristãos ou confrades, mas sobretudo o sistema, o aparato. [xvi]
Portanto, a escolha de pertencer a uma forma de vida de discípulos, hoje em dia não vem antes de mais de experiências teorizadas, de argumentos teológicos ou funcionalistas, mas sim de experiências concretas de viver de acordo com o Evangelho com outros irmãos ou irmãs que escolheram um caminho de fé e não uma rotina da observância. Hoje ninguém gosta de ser reconhecido como portador e guardião de um património de pensamento enredado num universo cultural de outros tempos, carregado de princípios, normas, sistemas de vida que não têm a mutabilidade da vida. O que atrai não é uma norma, mas somente figuras vivas. Quando a presença de pessoas vivas não é tão evidente, então a vida que procuramos vai ficar colada principalmente a tradições, protocolos, rituais, estruturas ou práticas, às quais nos esforçamos por dar vida.
Uma religiosa escreveu: «quantos andaimes farisaicos tenho visto disfarçados de cenas evangélicas vazias». São expressões que dizem que um certo modelo fracassou, mas não uma tensão espiritual enérgica, uma perspectiva ideal como a de tender para ser uma memória viva de Cristo, reunindo os seus sonhos que trazem a plenitude da humanidade.
Concluindo: «Se não deixarmos a novidade do Espírito e da História entrar e modificar o que precisa de ser mudado, transformado e transfigurado, o próprio Espírito há de encontrar o seu caminho e vai agir sem nós, deixando-nos à margem dos acontecimentos desta humanidade».
[i]L.Bruni, Il coraggio di pensare il frutteto, in Avvenire 15.2.15.
[ii]Congregação para os Institutos de Vida Consagrada e Sociedades de Vida Apostólica, Vinho novo, odres novos, n.38
[iii]Cf. F. Ciardi, Koinonia, dagli Apoftegmi di Arsenio, p.354
[iv] Cf. Rino Cozza, Tra voi non sia così, EDB, p. 21-23.
[v] Congregação para os Institutos de Vida Consagrada e Sociedades de Vida Apostólica, Perscrutai (2014), p. 78.
[vi]Vinho novo, odres novos, n.55
[vii]Vinho novo, odres novos, n.19
[viii] Vinho novo, odres novos, n. 43
[ix] Vinho novo, odres novos, n. 21
[x] A. Giabbani, in Dizionario degli Istituti di Perfezione, ed Paoline 1973, vol.6, p.528
[xi]Y. Congar, Le Concile de Vatican II, Beauchesne, Paris 1984, p.12 ss.
[xii]Y. Congar, Le Concile de Vatican II, p. 41
[xiii] Vinho novo, odres novos, n. 24
[xiv] L. Bruni, Comunione per il ben vivere, in Avvenire 9.2.2014
[xv] A. Matteo, Come forestieri, Rubbettino, Soveria Mannelli, 2008, 14
[xvi] F. Cosentino in Consacrazione e Servizio n. 1 (2012) 42
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