Entrevista a D. José Ornelas Carvalho, Bispo de Setúbal (Portugal) e Presidente da Conferência Episcopal Portuguesa. Resumo da entrevista realizada por videoconferência.
Durante 12 anos conduziste a Congregação dos Dehonianos e quando terminaste o teu serviço foste imediatamente consagrado bispo para a Diocese de Setúbal; desde o passado mês de Junho és o Presidente da Conferência Episcopal Portuguesa. Sempre afirmaste que querias ser missionário, mas estás no coração das instituições eclesiásticas… Como se concilia missão e instituição?
Eu sempre quis ser sacerdote e missionário. Mas Deus sempre me trocou as voltas. Tive saudades daquilo que deixei para trás, mas aceitei tudo sem amargura e nunca aspirei aos vários cargos que fui chamado a assumir. Pessoalmente, teria preferido ir para as missões, mas o Papa pediu-me para ser missionário aqui, em Setúbal. Hoje a missão está na Europa e este é um desafio para toda a Igreja.
Recentemente escreveste uma nota pastoral na qual convidas os cristãos a enfrentar este tempo da pandemia como “um regresso à comunidade”. Podes explicar-nos melhor?
Também aqui, em Portugal, a pandemia está a explodir novamente. Antes de mais, devemos defender a vida e não colocar ninguém em perigo. Mesmo durante o confinamento vimos que é possível viver, organizar, celebrar a comunidade. A igreja não se forma simplesmente por via digital, mas a criatividade digital foi formidável. E espero que isto se mantenha. Mas temos de fazer comunidade. A igreja deve funcionar como um laboratório de comunhão, de ajuda, de partilha de recursos.
Para superar o vírus, não se pode criar desequilíbrio social e económico. Tenho notado que aqui na diocese os maiores surtos ocorreram entre os grupos mais débeis. Temos de enfrentar a crise juntos. Estamos no mesmo barco, como diz o Papa Francisco. A Igreja deve abrir-se para que possamos compreender que estamos juntos e que procuramos enfrentar juntos a pandemia. Caso contrário, o futuro será difícil para todos.
Nesta época da COVID-19, o Parlamento português colocou a eutanásia na ordem do dia. Como tem reagido a Igreja em Portugal?
A igreja tem agido sabiamente tal como agiu aquando o tema do aborto. Não fez um exercício de força e de poder, mas provocou a reflexão. Realizou-se um importante trabalho de sensibilização. O Parlamento rejeitou o referendo assinado por 100.000 cidadãos e preferiu agir sozinho. Nunca condenarei uma pessoa que, no limite da esperança e para pôr fim à dor (não tanto física), decide acabar com a sua vida. Nunca a condenarei, mas coloco-me a seu lado. O que não posso aceitar é que a sociedade proponha a eutanásia como uma boa notícia e um remédio para as pessoas que estão no fim da sua vida. A sociedade deve estar ao lado dessas pessoas e acompanhá-las para as ajudar a encontrar razões para viver. O nosso país deve investir em cuidados paliativos e experimentar formas especializadas de acompanhamento dos doentes terminais. Especialmente nesta época de pandemia, devemos estar ao lado dos idosos e dos mais frágeis.
No Santuário de Fátima colocaste em evidência o papel da mulher na Igreja. Esta é uma questão delicada no debate eclesial juntamente com outras, como a luta contra os abusos sexuais e os casais homossexuais, sobre os quais o Papa Francisco também expressou recentemente a sua opinião.
Penso que seja importante compreender o espírito do Evangelho, a abordagem aos homens e às mulheres. Em Fátima, disse que a Igreja deve ser materna e paterna. A igreja, apresentando-se na sua masculinidade, não é reflexo nem da Criação nem do Evangelho. Em Fátima celebrámos Maria. Como é que se pode pôr a mulher fora de casa? Ela é a imagem da Igreja e acolheu Jesus.
Se uma pessoa é frágil, é nosso dever cuidar dela e acompanhá-la. Deus ama-nos, e amarmo-nos é a fonte de tudo. Se somos irmãos e temos dificuldades, devemos olhar uns para os outros com amor e respeito e cuidar uns dos outros. Se o julgar substituir o amor, significa que ainda não compreendemos a nova lógica do Evangelho. Nessas questões debatidas, como a mais recente sobre a homossexualidade, existem posições muito contraditórias. Não estou preocupada com isso. Mas precisamos que a igreja seja um laboratório de humanização.
A 4 de Outubro último, o Papa Francisco publicou a nova Encíclica “Fratelli tutti”. O que devemos fazer?
Precisamos de criar uma cultura evangélica: a cultura de um mundo para todos. Há movimentos populistas que se apresentam como paladinos de valores que não são valores: não querer ser contaminado pelos outros, deixar de fora os emigrantes. O Evangelho deve criar cultura, uma cultura inclusiva, aberta a todos.
Em 2023 celebrar-se-á a Jornada Mundial da Juventude, em Lisboa. Como é que as dioceses se estão a preparar? Com que espírito devemos preparar-nos?
Começo com a experiência da minha diocese. Há cerca de três anos que temos como tema os jovens, mas não é para seguir uma moda. As paróquias lamentam-se porque não têm jovens, e quando os têm, o que é eles fazem? Não passamos o testemunho. Os jovens devem realmente tornar-se protagonistas e responsáveis na paróquia. Temos de levar os jovens a sério. Nas paróquias estamos a criar o conselho dos jovens, porque eles devem ter uma palavra na comunidade e o conselho paroquial deve ouvir os jovens, e o mesmo acontece a nível diocesano. Tal como numa família, os jovens devem ter as chaves da casa. Quando é que lhes damos as chaves da nossa paróquia? O sacerdote deve acompanhá-los, desempenhar a missão de padre, e deixar a organização a cargo dos jovens.
Quanto à próxima Jornada Mundial da Juventude, estamos a organizar cursos de formação, em colaboração com as autoridades civis. Estamos convencidos de que será um momento de esperança, uma experiência de comunhão universal, de partilha da alegria de ser cristãos.