Hoje, há no mundo mais de 80 milhões de refugiados. A guerra na Ucrânia mostra como este drama cresce exponencialmente. Também o Padre Dehon viveu o drama da guerra e de ser refugiado, não sem consequências psicológicas.
A 28 de agosto de 1914, a guerra chegou a Saint-Quentin… E apesar de ser uma cidade francesa, passou muito rapidamente para a frente de batalha do lado alemão, forçada a viver sob a ocupação nazi. Para entender o que isto significava, basta mencionar uma história que o Fundador relata nos seus cadernos de guerra: dois jovens religiosos, o Pe. Ignatius Devrainne e o Pe. Emil Bontemps, saíram para fazer a sua típica caminhada matinal e procurar notícias mas não voltaram para o almoço. Veio a saber-se mais tarde que foram presos por terem rido de um pelotão alemão que passava. Foram depois processados com o risco de serem presos. Felizmente, tudo terminou com uma multa.
Em 1917, após um longo impasse na guerra das trincheiras, deram-se as contra-ofensivas dos franceses e britânicos mas sem qualquer sucesso; graças à ajuda americana, o estado-maior do exército imperial foi forçado a organizar a frente de guerra mais a norte. A população teve que ser evacuada e as infraestruturas das cidades ocupadas foram bombardeadas. Uma das cidades afetadas por esta ação foi Saint-Quentin.
A evacuação de Saint-Quentin
Ocorreu em meados de março de 1917. Claro que para os habitantes da cidade foram dias de medo por aquilo que poderia acontecer, reforçado pela constante requisição de objetos de cobre destinados ao fabrico de canhões de artilharia. A evacuação, anunciada já a 2 de março, fez com que as duas últimas semanas se tornassem num período insuportável de preparação e era necessário deixar quase tudo. Nas suas notas, Dehon escreveu que cerca de 25.000 francos foram perdidos em livros enterrados. De acordo com os cálculos de Emiel Lambert de 2011, há dez anos atrás corresponderia a cerca de 100.000 euros.
Lendo os apontamentos de Dehon, parece que a 12 de março chegou a informação de que na manhã seguinte seriam retirados de Saint-Quentin. Mas deixemos o próprio Dehon contar a história. Seguiremos as suas Notes Quotidiennes e os seus cadernos de guerra intitulados “Casa do Sagrado Coração durante a guerra”:
A 12 de março, após vários dias de árdua preparação, veio o exílio.
A 13, partida. Às cinco da manhã na estação, para sair às 9. Celebrei a missa às 4.30. Colocaram-nos num camião. Sentámo-nos sobre as nossas malas. O fornecimento americano deu-nos alguns biscoitos e chocolate para a viagem. Deixei as minhas duas casas mobiliadas (Sagrado Coração e Colégio S. João – J.B.), a capela do Sagrado Coração estava toda apetrechada.
A viagem foi cansativa: longas paragens. Incerteza sobre o destino da viagem. Falava-se de Givet. À noite, desembarcámos em Enghien. Exaustos, com as nossas bagagens às costas, só se podia sair da estação um a um. O município de Enghien queria contar-nos: um absurdo da administração. Caímos de cansaço. Os Jesuítas acolheram-nos fraternalmente. Eu estava exausto de cansaço e de impressões. Eu nunca irei superar completamente tudo isso.
Pensei que ía morrer de ataque cardíaco quando saí da estação.
Fiat voluntas Dei!
Uma história que se repete
Tudo isto aconteceu há 105 anos. Ao ler estas palavras, vem-me à mente o que o padre Karol Rudzok, noviço que, no início da Segunda Guerra Mundial fugiu da Polónia para a Itália a pé com os seus companheiros, escreveu nas suas memórias ao deixar o noviciado de Felsztyn em 1939: A casa de Felsztyn já estava quase vazia! Chegou também para mim o momento, porque eu fazia parte do último grupo. Feitas as malas, fui cumprimentar o Mestre e encontrei-o a rezar o breviário. Creio que as lágrimas estavam a cair dos seus olhos quando o informei que o último grupo estava pronto para partir…
Vale a pena lembrar que nós religiosos nunca estamos protegidos pelo mosteiro durante a guerra. O nosso pensamento vai para os nossos confrades da Ucrânia, que estão com medo e, no entanto, estão entre o povo, na linha da frente. A história da aventura de guerra do Fundador recorda-nos a verdade de que todos somos apenas peregrinos a caminho do Pai. E pode acontecer que tenhamos que procurar refúgio junto dos nossos irmãos…
O Padre Dehon demorou um dia a chegar a Enghien, cidade belga a cerca de 30 km a sudoeste de Bruxelas. Lá os Jesuítas receberam-no como hóspede. A sua estadia em Enghien foi prolongada porque as autoridades da ocupação alemã não quiseram emitir-lhe um passaporte que lhe permitisse viver na Casa Geral, em Bruxelas Ixelles. Lá Dehon teve também a oportunidade de conhecer o grande missionário russo Pe. Michel d’Herbigny. Parece que foi ele quem cuidou do Padre Dehon que se tinha magoado ao sair do vagão. É um testemunho sobre o estado de espírito do Padre Dehon. Parece que a guerra tinha levado o nosso Fundador ao encontro com sua própria velhice.
Os efeitos psicológicos da guerra em Dehon
O Fundador viveu a guerra de forma muito intensa e quando falava dela era sempre em termos diabólicos; assim descrevia também o triunfo do Sagrado Coração de Jesus, de que falava com frequência e de uma forma bastante apocalíptica. Isto desapontou muito o seu colega, especialmente porque tinha ouvido falar dele como uma pessoa controversa, mas cheia de energia. Dehon, que aos poucos se aproximava dos 75 anos, começou a escrever nas suas cartas desta época que era velho, incapaz de viajar, que tinha que ficar onde estava e aguardar ansiosamente a morte. Ele estava ansioso por saber notícias dos doentes e do padre Adrian Guillaume, que, após a morte do Pe. Prévot, tinha sido escolhido para ser o seu sucessor. Ainda por cima, uma semana depois de ter finalmente chegado a Bruxelas, o Pe. Guillaume morreu em Lovaina a 28 de julho.
Recomeçar e reconstruir
Acompanhando o Padre Dehon nestes momentos que parecem ter sido os mais difíceis da sua vida, devemos admirar a sua determinação em recuperar as forças e recomeçar novos projectos, como o da basílica romana dedicada ao Sagrado Coração de Cristo Rei, ex-voto pela restauração da paz. Dehon ainda encontrou forças para viajar até Roma e encontrar-se com o seu amigo o Papa Bento XV. Além disso, estava determinado em reconstruir a sua obra após a guerra, tanto em Saint-Quentin como noutras partes do mundo. O seu zelo está esplendidamente expresso numa carta circular enviada em fins de julho de 1919, no início do Capítulo Geral que empreendeu a reconstrução e elegeu como primeiro conselheiro o P. Joseph Laurent Philippe, primeiro sucessor de Dehon:
Temos feito o bem. As nossas missões estão a conquistar milhares de almas para a Igreja. Na Europa trabalhamos para a salvação das almas através do santo ministério, da pregação e dos retiros. Isso é bom, mas não é toda a nossa missão. Devemos unir o zelo de Santo Inácio com a piedade de Santa Gertrudes. Releiam o capítulo fundamental das nossas constituições. O nosso fim especial é uma terna devoção ao Coração de Jesus, um culto de amor e de reparação. Tudo o que em vista disso fizemos até agora ainda não é suficiente, teremos que fazer grandes resoluções. Devemos tornar-nos naquilo que Nosso Senhor quer.
Comecemos por agradecer a Deus todas as bênçãos que d’Ele recebemos nos últimos quarenta e dois anos. A gratidão atrai novas graças. Ofereçamo-nos novamente ao Coração de Jesus para viver e morrer no seu amor, na vida interior, na vida de reparação e de imolação. Rezemos! Rezemos muito… Mas acima de tudo humilhemo-nos. Peçamos sinceramente perdão por todas as nossas falhas, por tudo o que possa ter retardado e diminuído as graças que Nosso Senhor nos destinou e que Ele quis dar à Igreja pelo nosso ministério e em troca dos nossos sacrifícios.