Reflexão diária sobre as leituras da liturgia do dia
Amós 2,6-10.13-16
Mateus 8, 18-22
A passagem do Evangelho que escutamos na eucaristia de hoje acontece depois da experiência de Jesus no monte onde transmitiu às multidões as bem-aventuranças e as instruiu na lógica do Reino. Descendo do monte, no início do capítulo 8, Jesus realiza um conjunto de milagres: a cura do leproso, a cura do servo do centurião e da sogra de Pedro. Estes milagres atraem a curiosidade das multidões que se reúnem junto da casa de Pedro. Jesus, porém, não se deixou iludir pela euforia e entusiasmo dessa multidão que se juntou à sua volta movida pela curiosidade ou pela perceção que dele poderia receber alguma coisa. Perante essa exaltação ele decide deixar a multidão e passar para a outra margem, para a terra dos gerasenos, uma terra onde não havia multidões entusiastas para o receber, mas onde Jesus também pôde manifestar o seu poder. Esta opção de Jesus mostra a radicalidade da sua missão, Ele veio para curar o ser humano na sua realidade concreta, em todos os contextos sociais e humanos seja nos mais favoráveis e felizes, seja nos mais difíceis e infelizes.
Ao mestre da lei que se dispõe a seguir Jesus para a outra margem, ele apresenta a radicalidade da sua missão: “o Filho do homem não tem onde reclinar a cabeça”. Não tem casa, não tem bens, não tem família, mas a plena liberdade e a certeza do amor do Pai que lhe dá a capacidade de tudo possuir e tudo preencher com esse mesmo amor. Jesus contempla respeitosamente a beleza de cada coisa e de cada pessoa na sua máxima beleza sem se apoderar, sem impor, sem simular, mas trazendo à luz a verdade das coisas e de si mesmo. O filho do homem não tem onde reclinar a cabeça, e como ele também o discípulo não o terá, porque o discípulo não é maior do que o Mestre, mas é chamado a seguir ao mestre em tudo incluindo na pobreza e na doação da sua própria vida.
Ao discípulo que lhe pede um tempo para ir sepultar o pai a exigência de Jesus é ainda maior, “deixa que os mortos enterrem os seus mortos”. Esta exigência já não tem a ver só com questões de conforto ou com as seguranças da vida do discípulo, mas diz respeito às relações familiares, aquelas que lhe dão identidade e que são consideradas as mais sagradas desde o início da sua vida, como da vida de todas as pessoas, aquelas que o fazem sentir-se pessoa, única, querida e amada. Mesmo diante desse amor autêntico e forte, o chamamento de Jesus é claro: Segue-me! Agora! Deixa…
Estas palavras tão fortes e exigentes que Jesus dirige a todos os que se dispõem a ser seus discípulos, faz-nos retornar uma vez mais à exigência da vida cristã, na qual todos nos devemos sentir discípulos a caminho com o mestre, mas ainda mais para nós que nos sentimos chamados e nos dispusemos a viver a nossa condição de discípulos numa consagração total da vida a Deus e aos irmãos.
Ouvir estas palavras de Jesus é um convite a regressarmos ao primeiro momento da nossa história vocacional, ao momento do nosso encontro com Jesus e sentir a força dessas palavras fortes e exigentes que nos chamaram a embarcar com ele. É um convite também a regressarmos e revivermos o entusiasmo do nosso coração quando nos dispusemos a segui-lo, apesar de todas essas exigências.
Regressar uma e outra vez a esse momento belo e feliz que mudou a nossa é uma oportunidade de recomeçar sempre com o espírito renovado cada missão sem medo dos desafios que nos aparecem pela frente.
Muitas vezes esquecemo-nos que somos discípulos de Jesus. Conhecemos o seu caminho, temos até a sua cruz diante dos nossos olhos, mas achamos que connosco vai ser diferente, que este tempo é diferente, que já não existe lugar para crucifixões, que devemos procurar uma vida tranquila e feliz.
O discípulo não é maior do que o mestre. O discípulo verdadeiro é aquele que nunca desvia os olhos de Jesus, e que faz dessa contemplação e dessa proximidade a máxima realização da sua vida. O Pe. Dehon convida-nos a fazê-lo no nº 21 das nossas constituições: “Com s. João, vemos no lado aberto do crucificado o sinal do amor que, na doação total de si mesmo, recria o homem segundo Deus. Contemplando o coração de Cristo, símbolo privilegiado desse amor, somos fortalecidos na nossa vocação”. É nesta atitude decidida, corajosa, consciente e esperançosa que somos de novo enviados para a missão.
A exigência da nossa missão no mundo e as nossas dificuldades podem sempre ser superadas pela memória feliz do nosso chamamento e pela experiência constante da contemplação do coração aberto de Jesus que arrebata, fortalece e transforma. É também na familiaridade desse coração que, enquanto congregação, nos reunimos em Capítulo para avaliarmos as forças e fraquezas do nosso testemunho, a nossa capacidade de conversão, o lugar que ocupamos na Igreja e a nossa capacidade e disponibilidade para estar no meio dos pobres, o lugar privilegiado onde Deus habita.
Na incerteza do mundo de hoje, como consagrados dehonianos, podemos ter a tentação de querer ficar nas terras seguras que já conhecemos, disfrutando dos resultados conquistados, mas urge relançar-se de novo com Jesus na missão arriscando o desconhecido sem medo dos frágeis resultados, porque sabemos que estamos com Ele.
No mundo fragmentado e polarizado em que vivemos é essencial que sejamos capazes de viver a liberdade que nos pede Jesus, a liberdade de aceitarmos perder as seguranças de outros tempos e de outras terras, a liberdade de perdermos espaços que nos deram identidade, a liberdade de arriscar novas periferias, estando conscientes da incerteza e das dificuldades que encontraremos.
Neste mundo fragmentado marcado pela exaltação do indivíduo, somos convidados a dar um autêntico testemunho de vida comunitária, onde a dimensão pessoal não desaparece mas é integrada num dinamismo transcendente;
Neste mundo fragmentado onde tantos grupos humanos deslocados vivem em terras que não são suas sentindo que não pertencem e não são queridos em nenhum lugar, somos convidados a acolher o dom da internacionalidade como uma oportunidade de maior concretização do dom da fraternidade;
Neste mundo fragmentado tantas vezes marcado pela superficialidade da vida e nas relações somos chamados a testemunhar a profundidade do amor de Cristo e a força de um amor verdadeiro que resgata e salva;
Neste mundo fragmentado onde tanta gente se sente ferida por outros ou por si mesmos, vítimas de tantas formas de exploração, somos chamados a levar a alegria da reconciliação que ajuda a sarar feridas e a regenerar vidas perdidas.
Diz o nº 7 das Constituições: “o Pe. Dehon espera que os seus religiosos sejam profetas do amor e da reconciliação dos homens e do mundo em Cristo”. Esta parece ser neste mundo a nossa missão mais urgente que começa antes de mais dentro de cada um de nós e das nossas comunidades.
As palavras duras de Amós na primeira leitura de hoje e que se referem ao povo da Aliança que se afastou de Deus promovendo os caprichos dos ricos à custa da exploração e do sofrimento dos pobres é a confirmação do coração bom e grande de Deus que sempre cuida do pobre e não suporta que ele seja utilizado como objeto ou reduzido na sua dignidade, mesmos que essas atitudes opressoras vêm do povo que ele escolheu. Para Deus não basta a vontade do povo da aliança para viver a lei, é preciso que ele a viva efetivamente e que demonstre na obediência à lei a sua gratidão pelos benefícios recebidos da parte de Deus. A dureza das palavras de Amós ao povo santo ajudam-nos a nos questionarmos acerca da nossa própria missão e a avaliarmos com sinceridade de que lado estamos, a quem servimos e como é que servimos. Diz o nº 18 das constituições: “É também na disponibilidade e no amor para com todos, especialmente para com os mais pequenos e com os que sofrem, que viveremos a nossa união a Cristo”.
Nestes dias de graça que o Senhor nos chamou a viver durante este Capítulo, que o Espírito de Deus nos guie pelo caminho da conversão, da verdade e da caridade para que esta opção preferencial pelos pobres e a colaboração na reconciliação do mundo e da humanidade, sejam os lugares privilegiados da nossa união a Cristo na sua Oblação ao Pai.