A mensagem da encíclica é tão irrealista e rebuscada quanto o Evangelho. No entanto, é a única opção viável ao voltar atrás para encontrar nosso caminho para o futuro.
O Papa Francisco tem uma maneira de nos tirar da trilha. Ele o fez com a Evangelii Gaudium. Ele o fez novamente alguns anos mais tarde com a Laudato si! E no dia 4 de outubro, festa de São Francisco, ele continuou na mesma linha com a sua Fratelli tutti! Como bispo de Roma, o Papa Francisco acumulou um repertório considerável de escritos e documentos com um estilo de escrita que certamente marcará os futuros escritos da Igreja. Foram-se as longas e complicadas encíclicas doutrinárias com seu jargão técnico. As cartas do Papa Francisco não são do alto tentando convencer com sua autoridade; estes escritos têm autoridade porque procuram convencer com seus argumentos. E se o argumento não for convincente, ninguém é responsabilizado por não aceitá-lo, exceto talvez na atual carta sobre a questão da pena de morte e da guerra justa.
Por que os Dehonianos deveriam estar interessados na última carta? Fratelli tutti é o mais recente dos escritos papais que se enquadram na categoria de encíclicas sociais. Padre Dehon testemunhou estando presente no lançamento deste empenho social da Igreja em 1891. Na época, devido à sua estreita colaboração com Leão XIII, ele aceitou o mandato de “pregar” estas encíclicas. Os temas eram-lhe eram muito caros. Dois anos antes, em 1889, ele havia começado algo semelhante em seus escritos. Ele procurou promover a missão social do Coração de Jesus, iniciando Le règne du Sacré-Coeur, um periódico mensal. Ele acreditava que, no contexto do liberalismo e da economia laisser-faire de seu tempo, o que faltava na sociedade francesa era o que ele mesmo havia experimentado através do amor do Coração de Cristo. Em seus escritos, ele perguntou o que aconteceria se este amor – que ele chamou de “amor puro” – se tornasse a força motriz interna das empresas políticas e econômicas de seu tempo.
Tanto na Fratelli tutti como na encíclica social do Papa Bento XVI, Caritas in veritate, a questão central era a mesma. O que acontece se os humanos inserissem o amor – o agape bíblico – em suas relações e encontros sociais. O que aconteceria com as relações econômicas, sociais e políticas internas de uma nação ou internacionalmente, se considerássemos a Terra como verdadeiramente pertencente a todos igualmente, se atuássemos para com todos os habitantes da Terra como nossos irmãos e irmãs, se as relações entre os seres humanos não fossem determinadas pelo poder econômico e “certo”, mas pelo amor. O Papa Bento XVI já havia explorado como poderíamos passar além de uma noção de justiça para incluir a noção de irmão nas minhas relações com os outros. Ele tinha até ousado propor que a sociedade se beneficiaria em suas relações sociais se eles levassem em conta a palavra de Jesus: “Amai-vos uns aos outros como eu vos amei”, para nos permitir considerar a gratuidade e a graciosidade como um inicador de nossas relações sociais.
Esta é também a tarefa que o Papa Francisco se deu a si mesmo na última encíclica. Ele encoraja toda a humanidade a explorar – a encíclica é dirigida a todos não apenas à comunidade católica – o que o imperativo evangélico do amor significaria para o que o Cardeal Czerny chamou de “o mundo à beira do abismo”. Muitos poderiam perguntar: “Não é um pouco tarde quando a pandemia do coronavírus está devastando a população mundial, quando a economia mundial está implodindo sob o peso da desigualdade, e a ecologia mundial está ameaçada por questões de habitabilidade, quando os humanos politicamente estão cada vez mais divididos e incapazes de ouvir uns aos outros”. É de fato uma tarefa assustadora”. O Papa Francisco nos deu uma imagem desta missão quando, em meio à pandemia, ele ficou sozinho na praça de São Pedro orando e abençoando o mundo. Atrás dele está a arquitetura maciça de São Pedro, mas vazia de pessoas. O poder institucional parece quebrado, a estrutura imperial, pós-Constantina despojada de sua atração simbólica. Em um momento de ruptura das relações de poder humano, será que chegou a hora de voltar à tábua de desenho? Todos nós podemos nos perguntar: Não será tarde demais?
Marcello Neri em sua Giustizia della Misericordia (2016) concluiu que, com o ministério papal de Francisco em 2013, parece ter sido inaugurada uma nova era na Igreja. Ele a chamou de o fim da Igreja como uma realidade separada. Terminou aquilo a que chamou “ocupação católica do espaço público”. Desta vez, com a pandemia que nos persegue de todos os lados, parece o fim de uma era. O Papa Francisco está nos avisando: “Não pense sequer em tentar voltar a um tempo anterior ao COVID 19”. Se alguém deseja voltar, ele nos aconselha, então volte ao Evangelho, à alegria do Evangelho e deixe cair todo o desnecessário que acumulamos. Usemos este tempo para repensar como cuidamos uns dos outros economicamente, como vivemos juntos politicamente, como reaprendemos a nos acolher, como aprendemos a falar “caridosamente” uns com os outros para criar vizinhos uns dos outros como fez o bom samaritano.
A mensagem da encíclica é tão irrealista e rebuscada quanto o Evangelho. No entanto, é a única opção viável ao voltar atrás para encontrar nosso caminho para o futuro.