A encíclica "Fratelli tutti" evoca a espiritualidade do Sagrado Coração. Porém é uma coisa forçada ver conexões diretas entre a Fratelli tutti e a espiritualidade dehoniana. Algumas linhas dialéticas.
Com a encíclica Fratelli tutti, Francisco paga a segunda parte da sua dívida ao nome tomado do Pobre de Assis, mostrando que a escolha continha um projeto de vida e ministério, muito além das simpatias hagiográficas.
Ao invés disso, encontrar conexões diretas entre a Encíclica Fratelli tutti (FT) e a corrente principal da espiritualidade dehoniana só pode vir de uma exegese forçada ou pelo menos de uma longa declinação de subordinados de significado.
É verdade que a FT “também tem muito a dizer sobre nossa vida dehoniana”, como enfatizou P. Carlos Luis quando convidou a Congregação a meditar sobre suas riquezas. E permanece ainda mais verdadeiro que a FT é um convite para despertar e reviver em nós “os mesmos sentimentos de Jesus Cristo”, uma vocação inscrita no centro da espiritualidade do Sagrado Coração.
Sint unum e vocação restauradora
Dos “sentimentos de Cristo Jesus” a encíclica privilegia aqueles com um traço “social” resumidos no ícone do Bom Samaritano. A FT insere a leitura da parábola no plano cósmico e teológico do mal que entrou no mundo por inveja do dia-bolon, daquele que tem por plano dividir e mostrar seu domínio sobre o mundo na história fratricida de Caim e Abel (cf. 57). É a ruptura com uma leitura puramente “horizontalista” da encíclica de Francisco, para restaurar o valor teológico ao que, em nome do amor de Deus “derramado em nossos corações”, é realizado para a “melhor política” (cap. 5) e para a “amizade social” (cap. 6).
É a dialética fecunda que estamos acostumados a ler, com os olhos da espiritualidade dehoniana, na “vocação reparadora que o Espírito desperta na Igreja”. Em todo nosso trabalho como Congregação e em cada obra individual, o que testemunhamos é a vocação de sermos “profetas de amor e servos da reconciliação”. O “sint unum” é o horizonte que inclui e ultrapassa o projeto de paz.
O mundo fechado e o coração aberto
Uma segunda dialética que anima a FT é a profecia pronunciada diante das “sombras de um mundo fechado” (cap. 1) para vir a “pensar e gerar um mundo aberto” (cap. 3).
O capítulo 4 (“Um coração aberto para o mundo inteiro”) indica a chave para uma possível conversão, mesmo diante dos desafios cósmicos, na maturação de “um coração aberto”.
“Gratuidade que acolhe” é o dom recebido e dado que, como na parábola do Bom Samaritano, é indicada em relação ao indivíduo (“o sabor local”) contra o pano de fundo de um “horizonte universal”.
O “coração aberto ao mundo inteiro” e o “coração aberto ao mundo” são os dois filamentos espirais que compõem o DNA da espiritualidade dehoniana, o código genético que preside a “impressão” de cada filamento da vida pessoal e comunitária.
O Coração aberto para o mundo é o Coração de Cristo aberto pelo transpassar do seu lado na cruz. Nosso coração aberto ao mundo é a participação (também histórica) nesse Coração, é a encarnação (também singular) desse Coração universal. Em modo que nenhuma declinação histórica, como as muitas sugeridas por Francisco, seja apenas “doutrina social” e, em vez disso, se proponham como atitude teológica, discurso sobre o homem e discurso sobre Deus (theo-logia).
A postura do Bom Samaritano que se curva sobre o “estranho” caído nas mãos dos ladrões é a postura assumida por Deus em Cristo quando ele “se humilhou, fazendo-se obediente” até o dom da vida.
É o DNA que está impresso em nossa postura – de corpo e espírito – quando nos curvamos sobre cada homem, “ferido no corpo ou no espírito”, para levá-lo sobre nossos ombros e cuidar dele, não com um gesto individualmente heroico, mas na hospedaria comunitária da Igreja.
Ouso dizer que a FT evoca a espiritualidade do Sagrado Coração mais para o vazio do que para a plenitude. Mais no que não diz (invocando sua necessidade) do que no que diz. Mais nas premissas implícitas (o coração aberto de Deus) do que nas declinações explícitas (o coração aberto para o mundo inteiro).
A partir daí, toda a encíclica, com sua sábia carga de “doutrina”, pode ser importada para nossos projetos apostólicos sem perder o sabor próprio da vocação dehoniana. É a Sabedoria de Deus que “através dos séculos, passando para almas santas, prepara os amigos e profetas de Deus” (Sab 7,27)… da reconciliação.
Por mais que me fascine, no definir minha relação pessoal com Cristo e com as filhas e filhos de Deus, a partir do vocabulário joanino da amizade (“Ninguém tem um amor maior do que este: dar a vida pelos seus amigos”, Jo 15,13) mais que aquele franciscano da fraternidade.