14 junho 2021
14 jun. 2021

Valor público dos votos

Neste tempo de pandemia, não se trata de colocar em crise a vida consagrada, mas de reencontrar um sentido que permeia a vida quotidiana, que sustenta a questão do sentido quando é forçada a fechar-se em si mesma. Qual é o papel da vida consagrada nas nossas cidades?

por  Elsa Antoniazzi
Testimoni

email email whatsapp whatsapp facebook twitter versão para impressão

A situação de pandemia colocou a vida consagrada diante do dilema: como conciliar o isolamento com o chamamento e, portanto, o dever de estar próxima das pessoas? Entre os dois pólos da questão, naturalmente que foram apresentadas infinitas soluções, mas precisamente pelo facto de se ter que enfrentar este dilema, fomos transportados à questão mais profunda: qual é o papel da vida consagrada por si mesma nas nossas cidades?

Por cidade entende-se a comunidade de todas as mulheres e de todos os homens que vivem num território, que o frequentam, independentemente da filiação religiosa, ideológica ou outra. E depois por  si mesma, não em virtude dos benefícios que pode oferecer através dos gestos de solidariedade.

Agora que timidamente recomeçamos a sair e retomamos as actividades, a questão não deve ser posta de lado.

Perguntas em tempo de dificuldade

Como sempre acontece em situações difíceis, surgem problemas que geralmente são cobertos pela atenção quotidiana.

Não se trata de colocar em crise a vida consagrada, mas de redescobrir um sentido que permeia o quotidiano, que sustenta a questão do sentido quando é forçada a fechar-se em si mesma. A vida consagrada, como muitas outras categorias, viu-se bloqueada em muitos gestos habituais de proximidade e de solidariedade. Cada tipo de serviço viveu de modo diferente as limitações, e a diferença entre homens e mulheres terá sido importante.

Há muito tempo que este tema persegue a vida consagrada.

O Concílio já não a apresenta como uma “supererrogatória”, mas, para além desta linguagem, torna-se difícil encontrar outra que exprima eficazmente a tipicidade da experiência sem, de facto, voltar a instituir pirâmides; a afirmação normal da radicalidade evangélica é, na verdade, um compromisso louvável. Todos nós sabemos que tal não é exclusivo da vida consagrada, mas aceitou-se muito bem que é uma expressão útil para falar da vida consagrada, partindo do princípio de que não se quer sequestrar tal expressão.

Depois do Concílio, finalmente tornámo-nos seres humanos e não anjos, embora comprometidos pelos votos de obediência, castidade, pobreza! Depois de uma proveitosa fase de pesquisa psicológica sobre os três votos, foi-se esmorecendo a reflexão espiritual sobre eles, mesmo que continuem a ser votos, lugares existenciais nos quais a vida consagrada cresce na alegria e na dificuldade.

Passados quase sessenta anos do Concílio Vaticano, podemos voltar ao tema, sem medo de querer expressar sentimentos de superioridade.

O próprio Concílio abriu-nos ao diálogo inter-religioso, fazendo-nos entrar em contacto com experiências religiosas que conhecem uma forma monástica, demonstrando que a vida consagrada intercepta aspectos antropológicos com os quais o ser humano pode estruturar a experiência de relação com o transcendente. Isto é válido para todos? A capacidade simbólica do ser humano que permeia uma existência que na quotidianidade remete para algo que está para além de si mesmo.

A questão sobre a especificidade de uma vida consagrada cristã é, entretanto, apenas levada um pouco mais além.

Sempre como frutos do Concílio, mas também do crescimento da sociedade civil, vemos o florescimento de figuras laicais, e muitas vezes de leigas que se dedicam com gratuidade e igual generosidade, e em muitos casos em conjunto com os consagrados, nos mais diversos serviços de fronteira e não só.

No entanto, cada consagrada e consagrado vive um caminho de fidelidade que tem um cariz específico em que a dimensão vocacional é muito clara, independentemente das características e da história pessoal.

Poderíamos começar o alterar a pergunta e sair da preocupação com o significado para os outros, porque isso traz consigo um pouco de ânsia de desempenho, em vez de abordar o tema do significado para os próprios consagrados.

Como fazer memória de Jesus?

 Talvez seja mais pertinente perguntar-nos, não só como fazer memória de Jesus, imitando-o numa vida que ajude todos a levantar o olhar a Deus, mas também interrogarmo-nos a partir de Deus, precisamente pela força que a dimensão vocacional tem na vida consagrada. vida. Não será essa uma forma de viver a relação com Ele, com todo o coração, com toda a mente, com todas as forças?

A vida consagrada sabe que certamente é humana, porque Deus é assim e nós somos a sua imagem e semelhança.

Deste modo, o interrogar-se assume o seu caráter evangélico. Não é uma questão de identidade reconhecível dentro ou fora da Igreja, mas sim uma questão de fidelidade a si mesmos, na convicção de que estas palavras, para todos, possam estruturar uma vida na sua amplitude.

Assim, a castidade torna-se o caminho para viver em liberdade a relação com o outro e a responsabilidade para com todos, sabendo fazer-se pais e mães que geram a vida. A obediência na escuta do Evangelho encontra o caminho para assumir a existência, para suportar o viver nas fadigosas dinâmicas da existência. A pobreza indica o caminho para que o bem seja comum.

Se o modo de vida é invulgar aos olhos da cidade, as palavras que a dizem e que ela exprime fazem também parte do viver como cidadãos. Pelo menos no Ocidente, muitas vezes foi graças à vida consagrada que tal sucedeu. Pensemos, por exemplo, que os mosteiros preservaram a forma democrática de eleição, ou pensemos no que a vida consagrada do século XIX fez em favor das camadas mais pobres ou no campo da educação. Hoje, felizmente, alguns dos seus carismas tornaram-se património comum da sociedade e não apenas da Igreja.

Isto torna ainda mais significante (ou significativo) o dinamismo da vida consagrada, sempre atenta ao modo de testemunho significativo, torna-se, por isso, um lugar de consciência crítica. Ela não julga, mas ajuda lembrando a si mesma e a todos que o testemunho e todo gesto bom nunca esgotam o rosto de Deus.

Os três votos também podem ser vistos como contraposição às tentações de cada um, e que Jesus indicou: a riqueza, o poder, a luta contra Deus, fazendo-se Deus. Por isso podem ajudar a reconhecer a manifestação das tentações.

Cada mulher e cada homem são criados à imagem e semelhança de Deus, e é este traço comum que torna possível o reconhecimento mútuo. Por isso o ser cristão não nos separa do humano, nem mesmo quando se segue um caminho especial aos olhos do mundo.

A modalidade difundida e partilhada de vida consagrada, salvo algumas exceções, responde à intenção de despertar imitação em vez de admiração. Temos certeza de que o modelo do consagrado/a “puro e duro” seja assim tão evangélico? A santidade “por excelência” é isso se responde a uma vocação (que é única e singular); caso contrário, é virtuosismo narcisista. Com o risco de ser abandonada. Existe uma radicalidade interior que precede e molda a exterior.

Claro, quando a distância entre a radicalidade proclamada e a radicalidade vivida é uma distinção e não uma tensão, que brota a credibilidade.

As formas públicas mais “adaptadas” ao contexto provavelmente testemunham menos a radicalidade da diversidade, mas procuram uma “partilha crítica” do contexto de vida em que estão inseridas.

Dimensão profética dos três votos

 Podemos assim recuperar, sem medo de falsa grandeza, a dimensão profética dos três votos, que no seu doar-se são um sinal do apoio da fé no difícil caminho da sociedade civil para uma cidade mais justa para com todos. São apreciáveis ​​como esforço de encarnação, a tentativa de testemunhar possibilidades efectivas e genuínas de seguimento, vivíveis e vivificantes, ao contrário dos modelos de vida consagrada que buscam a ascese na mortificação. Quando era postulante, ficou impressa na minha memória, a questão feita por uma pessoa crente, praticante e culta: tu fazes os votos habituais? Para mim eles pareciam já suficientes. Depois todos nós entendemos que ao acrescentar-lhes algo corre-se o risco de produzir distorções no ser humano.

A vida consagrada dá origem a formas públicas, mas para que elas sejam um convite a “experimentar” – tanto quanto possível por todos, não apenas pelos melhores – quanta vida existe no seguimento e como é belo e agradável os irmãos estarem juntos.

Estabelece-se assim também um belo diálogo entre as vocações que poderíamos dizer que se geram, seguindo von Balthasar em “Os estados de vida”; o que, traduzido no quotidiano, pode também significar simplesmente a capacidade de escutar as experiências recíprocas como escola de vida para viver a cidade e a Igreja.

Concluímos com uma espécie de profissão de fé, forma na qual cada consagrado encontra imediatamente o sentido do vínculo com os irmãos/irmãs da comunidade e do seu estar na cidade.

Creio em Deus que dá tudo e continua pobre. Ele só pode dar-se dessa maneira.
Creio em Deus que nos criou para doar-se a nós e pede para ser acolhido, para ser Deus-connosco.
Creio em Deus que, na Eucaristia, não se oferece em “partículas”, mas sim tudo a cada um. E pede para ser recebido.
Creio em Deus casto: o amor dado é dado totalmente e para sempre. Não é pedido nada em troca, mas é necessário que seja retribuído.
O pecado, ou seja, a recusa em receber e retribuir o amor que é o próprio Deus, é mortal porque impede que Deus seja ele mesmo, isto é, um dom para mim.
Deus dá-se sem receber, sem vontade de conquista ou de chantagem. Ele dá-se verdadeiramente, lealmente.
Deus é sempre virgem: Ele ama-me todas as vezes novamente, como se cada vez fosse a primeira vez. Para ele, eu sou o único amor da sua vida.
Creio em Deus obediente: Ele entrega-se e investe tudo na minha resposta. Ele doa-se totalmente e espera; se eu não estiver lá, ele não terá mais nada.
Desde que Ele optou envolver-se com todo o coração, renunciou para sempre e lealmente a ser o omnipotente.
Ele escapou à ideia de estar fechado num nome, até que Ele próprio atribuiu um nome a si próprio, o único nome: Deus-connosco. Não O podemos mais pensar sem nós.
E Ele está connosco como aquele que serve, como o Servus, como o obediente por estatuto. Ele obedece às nossas coisas, até à cruz: “obediente até à morte e morte de cruz”. Por aquilo que sofreu, com o seu coração aprendeu esta obediência.
Creio em Deus, Espírito de liberdade. Quem ama conhece a Deus. Quem liberta é guiado pelo Espírito.
Creio no Espírito que ama a minha e sua liberdade.
Creio que a obediência ao Espírito seja por isso a origem da minha liberdade, para que eu tenha vida e a tenha em abundância.
Professo castidade, pobreza e obediência, não para ter menos, mas para ser mais: semelhante a ELE.

Testimoni é uma revista mensal, publicada pelo Centro Editoriale Dehoniano, com sede em Bolonha, Itália. A sua tiragem actual anda à volta dos 4.000 exemplares. Está também online.

É uma revista de informação, espiritualidade e vida consagrada. Há mais de 35 anos que está ao serviço da vida consagrada dando especial atenção à actualidade, à formação espiritual e psicológica, à informação sobre os acontecimentos mais relevantes da Igreja e dos institutos religiosos masculinos e femininos

Inscreva-se
na nossa newsletter

SUBSCREVA

Siga-nos
nos nossos canais

Dehonians | Sacerdotes do Coração de Jesus
Gabinete de Comunicaçãocomunicazione@dehoniani.org
Tel. +39 328 930 5024
Dehonians | Sacerdotes do Coração de Jesus
Sacerdotes do Coração de JesusCasa Geral
Via del Casale san Pio V, 20
00165 Roma, Italia
Tel. +39.06.660.560
 - 

Inscreva-se
na nossa newsletter

Leia a Política de Privacidade e escreva para