Dom Murilo Krieger foi bispo na Arquidiocese de São Salvador (Brasil) e é agora bispo emérito. Ele vive há alguns anos de novo numa comunidade dehoniana. Aqui o seu testemunho.
À medida que se aproximava o dia 19 de setembro de 2018, quando eu completaria 75 anos e deveria apresentar ao Papa minha renúncia ao ofício de bispo diocesano (cf. CDC, Cân. 401), comecei a ouvir a pergunta: Deixando a direção da Arquidiocese de Salvador, onde o senhor vai morar? Eu procurava ser discreto naquilo que dizia, embora já soubesse o que responder, pois uma questão de tão grande importância não poderia ser decidida na última hora.
Para mim, a decisão estava tomada desde quando respondi positivamente à nomeação episcopal, no começo de fevereiro de 1985: uma vez que iria deixar a vida comunitária na Congregação SCJ, em vista de um ministério que a Igreja me pedia, cumprida essa missão, voltaria para a família SCJ. Isso aconteceria 35 longos anos depois! Trabalhei em quatro dioceses, que estão em três estados: Florianópolis- SC, de 1985 a 1991, como Bispo Auxiliar; Ponta Grossa – PR, de 1991 a 1997, como Bispo Diocesano; Maringá – PR, como Arcebispo, de 1997 a 2002; Florianópolis – SC, como Arcebispo, de 2002 a 2011; e Salvador – BA, como Arcebispo Primaz, de 2011 a 2020. Somente na Arquidiocese de Florianópolis havia comunidades dehonianas.
Pouco antes da celebração de meus 75 anos, o Papa Francisco presenteou os bispos com uma oportuna carta: “Aprender a despedir-se” (12.02.2018). Não era só para mim, mas era também para mim que ele escreveu: “A conclusão de um cargo eclesial deve ser considerada parte integrante do próprio serviço, enquanto requer uma nova forma de disponibilidade”. Quem se despede, é chamado a elaborar um novo projeto de vida e a estar disponível para outros serviços pastorais, igualmente necessários na Igreja. Ouvi de alguns bispos eméritos que agora trabalhavam quase tanto quanto antes, mas sem as pesadas responsabilidades que tinham quando estavam à frente de uma diocese. Na prática, orientam-se atualmente pela observação do apóstolo Paulo: “Foi Deus que nos fez, criando-nos no Cristo Jesus, em vista das boas obras que preparou de antemão, para que nós as praticássemos” (Ef 2,10). Importante, pois, é descobrir quais são essas boas obras que devemos praticar.
Completados os 75 anos, voltou a pergunta: Onde o senhor vai morar? Para simplificar, dizia: Não vou morar sozinho, pois sempre gostei de viver em comunidade. Não vou ficar onde já trabalhei, pois poderia atrapalhar meu sucessor com minha presença. Não vou morar com familiares, tendo em vista que eles já têm sua vida organizada. Enfim, voltarei para a Província Brasileira Meridional, e para isso já tive a aprovação de seus Superiores. Escolhi o Seminário de Corupá, e minha escolha foi aceita. Aqui vivi sete anos, de 1956 a 1962, e tenho daquele tempo ótimas lembranças. Assim, em junho de 2020, dez dias depois da posse de meu sucessor em Salvador, cheguei em Corupá.
E agora? Valeu? Tenho vivido uma experiência muito interessante: conviver em uma comunidade com religiosos que não conhecia. Alguns nem tinham nascido quando eu fiquei bispo! No entanto, sinto-me em casa. Encontrei, e não só no ambiente de Corupá, mas em todas as casas da Província, o mesmo espírito de alegria e descontração dos meus velhos tempos.
De Corupá saio para ajudar a quem me pede, e se o que me solicitam estiver de acordo com minhas possibilidades. Minha principal tarefa tem sido a pregação de retiros para sacerdotes, inclusive religiosos. Por que essa “opção preferencial pelos padres?” É que uma vez, quando bispo de Ponta Grossa, precisei procurar um pregador para o retiro que se realizaria dali a alguns meses. Entrei em contato com dezessete bispos, e nenhum deles teve condições de aceitar o convite que lhe fiz, por causa de outros compromissos. Desde então, passei a dedicar duas ou três datas do ano para retiros – sempre e somente para sacerdotes.
Tenho visto que nosso carisma é mesmo eclesial: sem procurar fazer “propaganda” da nossa Congregação, introduzo em minhas pregações a necessidade da reparação, da imolação e da união com o Coração de Jesus em sua oferta ao Pai. Além disso, antes do almoço, 30 ou 40 minutos são dedicados à adoração eucarística silenciosa. Interessante como essa proposta tem sido sempre bem recebida!
Sei que os limites da idade são inexoráveis. Também no campo das atividades pastorais será preciso, um dia, a gente “aprender a despedir-se”. Aí está o exemplo do Papa Emérito Bento XVI, que se dedica particularmente à oração. Que riqueza devem ser suas preces para a Igreja! Lembro-me, também, da alegria que Dom José Antônio do Couto, religioso SCJ e Bispo de Taubaté, manifestou quando me contou de seu encontro com o Papa João Paulo II, em Aparecida (04.07.1980). Poucos meses antes (28.12.1979), ele teve um AVC, que imobilizou parte de seu corpo. Deslocando-se somente de cadeira de rodas, quis, mesmo assim ir ao encontro do Papa. Ao vê-lo e cumprimentá-lo, o agora “São” João Paulo II observou-lhe algo nessa linha: O senhor, nesta cadeira de rodas, pode estar fazendo mais pela Igreja do que nós, que vivemos correndo pelo mundo!
Tem crescido em mim uma convicção: Tudo é graça! Como Deus é misericordioso! É misericordioso porque é amor. “Deus é amor” (1Jo 4,16), foi o lema que escolhi quando assumi o serviço episcopal. Uma das mais fortes manifestações desse Seu amor tem sido as pessoas que Ele colocou e coloca em meus caminhos; pessoas que me servem e ajudam; amigos que eu não conseguiria comprar com ouro algum do mundo; fiéis, isto é, ovelhinhas queridas, que me fazem compreender porque Jesus tanto as ama.
Hoje, com mais razão constato e testemunho que Padre Dehon tinha mesmo razão ao afirmar que nos deixou “o mais maravilhoso dos tesouros: o Coração de Jesus!”.